São Paulo, quarta-feira, 24 de novembro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ARQUIVOS DO NAZISTA

Médico nazista foi empregado com registro em carteira de trabalho; documento era de amigo austríaco

Mengele trabalhou dez anos no Brasil

ANA FLOR
ANDRÉA MICHAEL
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Relatos do médico nazista Josef Mengele revelam que ele trabalhou formalmente em duas empresas por pelo menos 10 dos 19 anos em que viveu no Brasil.
Numa carta ao amigo austríaco Wolfgang Gerhard, de 22 de novembro de 1972, Mengele lamenta ter sido demitido após cinco anos como chefe de manutenção da Melhoramentos, fábrica de papel de Caieiras (SP). E planeja procurar outro emprego.
"Como agora posso comprovar que tive dois empregos, um após o outro, cada um por cinco anos, como "chefe de manutenção", não é problema achar um novo emprego, mas certamente o [problema será] escolher o "certo" para mim; talvez porque eu então novamente -conforme o meu jeito- fique por lá eternamente."
A carta faz parte do conjunto de 85 documentos em alemão que integravam os arquivos de Mengele apreendidos pela Polícia Federal em 1985 e aos quais a Folha teve acesso.
O médico nazista comenta com Gerhard que foi demitido durante um processo de reestruturação resultante de uma parceria com uma empresa alemã de papel.

"Homem em ascensão"
Mengele conta que, em meio às mudanças, ele se considerava em ascensão. "Como o último falante da língua alemã, eu praticamente era o "novo homem em ascensão" da nova firma. Infelizmente também tinha se transferido [para a fábrica em Caieiras], há cerca de um ano, o japonês Fabio".
Concluída a reestruturação, conforme relato do médico nazista, o cargo que o então operário almejava, de "gerente técnico", ficou para Fabio. "Claro que mais cedo ou mais tarde o futuro diretor-técnico, que somente fala alemão, se dirigiria mais a mim -e ignoraria o rosto asiático de meu superior. Como já disse: fui o homem em ascensão; isso todos sabiam e naturalmente também sabia disso o meu amigo Fabio."
O médico conta que sua posição de destaque teria levado Fabio a tramar sua demissão.
A Melhoramentos, por meio do executivo Sergio Sesiki, informou à Folha que a empresa nunca abrigou Mengele. Segundo ele, na época em que a ossada do médico foi encontrada no cemitério do Embu, em São Paulo, surgiu a especulação do vínculo funcional. "Isso nunca aconteceu. É o que eu posso dizer dos nossos registros formais e de relatos de antigos funcionários."
Junto com os escritos, a PF encontrou uma carteira de trabalho expedida em 1969 em nome de Wolfgang Gerhard, o amigo austríaco que cedeu seus documentos ao nazista. O único registro de emprego é de técnico industrial na Oficina de Soldas Erich Lessmann, provavelmente do amigo que, em seus escritos, o médico trata como "Erich".
A carta de Mengele mostra ainda que, nesse período, o médico se sentia muito confortável no Brasil. Apesar do desejo de voltar à Alemanha, ele receava não se adaptar às mudanças.
Com a demissão, ele comenta que teve a idéia de voltar. "Mas o que nós afinal sabemos da Europa hoje, além de que Willy Brandt [chanceler da Alemanha] foi reeleito? [...] Um ritmo tão agradável e tranqüilo e jovial como aqui no Brasil provavelmente não existe em lugar algum no mundo e não estou disposto a abaixar a cabeça, caso uma pessoa inferior queira se impor", diz. "Embora que: fim do provisório, de volta à pátria! [...] Mas como é a pátria? E continua sendo a pátria? Não me acolherá como inimigo?"


Texto Anterior: Justiça: TJ-SP julga procuradores acusados de fraude
Próximo Texto: Multimídia: Médico não teve arrependimento
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.