Circuito Inverno das águas

Por Ivan Lopes, G1 Campinas e Região


Casa onde o médico nazista Josef Mengele morou em Serra Negra — Foto: Marcelo Felipe Sampaio

O passado que envolve uma casa do sítio Santa Luzia, no bairro das Três Barras, aguça a curiosidade de quem explora os arredores de Serra Negra (SP). Os 23 alqueires de terra foram administrados, entre1961 a 1969, por Pedro Húngarez, um homem naturalizado paraguaio com sotaque alemão, que arriscava frases em italiano. Era Josef Mengele, sádico médico nazista caçado no mundo inteiro e responsabilizado por ao menos 400 mil mortes no complexo de campos de concentração de Auschwitz, no sul da Polônia, durante a Segunda Guerra Mundial.

Mengele pertencia à SS, exército de elite de Adolf Hitler, e havia fugido para a cidade. Era chamado pelos funcionários do sítio de Pedrão. O G1 conversou com um deles, que lembrou dos momentos junto ao "Anjo da Morte".

"Pai, olha o Pedrão na janela", avisava José Osmar Silotto, na época na pré-adolescência em meio ao cafezal do sítio. "Vamos, menino. Ele está vendo se estamos trabalhando", Silotto ouvia do pai, Eugênio. Os dois trabalharam para Mengele na cidade.

Josef Mengele — Foto: Reprodução

'Pagava em dinheiro e no dia certo'

Com 65 anos, aposentado e com o pai falecido, Silotto se lembra bem do período. Sabe do significado sombrio que representa o nome de Josef Mengele à história da humanidade, mas não o critica em nenhum momento.

"O que eu posso te falar. Sei de todo o mal que ele fez ao mundo, mas, durante nosso convívio, não tenho nada para falar. Nos pagava em dinheiro e no dia certo. Ainda curou minha anemia com uma bebida à base de beterraba. Eu estava muito doente, na época diziam que eu tinha amarelão. Pediu ao meu pai que trouxesse beterraba e voltou com uma bebida. Se fosse veneno, eu teria morrido. Em dez meses eu estava forte", recorda José Silotto.

Outro detalhe lembrado pelo antigo funcionário de Mengele foi o fato de sua habilidade em empalhar passarinhos. "Parecia que o bichinho iria sair voando", recorda.

Casa de Josef Mengele em Serra Negra ficava em sítio e ele tinha funcionários — Foto: Arquivo pessoal da família Stammer

Uma história de mistério

Mengele se dizia administrador do sítio na cidade. Hóspede ou dono? A pergunta é maquiada por certa dose de mistério. Um casal de húngaros se dizia proprietário das terras.

Geza Stammer passava a maior parte do tempo em São Paulo, com aparições frequentes. Gitta, a esposa, ficava na casa, enquanto Mengele passava as ordens aos funcionários no campo. Todos discretos, segundo o funcionário da época.

"Víamos o Pedro de um lado para o outro. Trabalhava também. Andou tudo por aqui", recorda José Osmar Silotto.

O casal húngaro tinha dois filhos pequenos, que também moravam no Santa Luzia.

Chegada de Josef Mengele, no único taxi de Serra Negra, ao sítio — Foto: Arquivo pessoal da família Stammer

Saga virou livro

A saga da família Stammer e a presença de Josef Mengele foi contada pelo pesquisador e historiador Noedir Pedro Carvalho Burini no livro "O Anjo da Morte em Serra Negra", lançado em 2013. Burini é formado em História pela Faculdade de Bragança Paulista (Fesb).

"A presença de Mengele na região me chamou a atenção. Não tinha muitas publicações sobre o assunto e resolvi me aprofundar. Descobri fatos novos depois de muita investigação", diz Burini.

O historiador visitou Paraguai e Uruguai, países que também receberam o "Anjo da Morte". Descobriu, por exemplo, que o nazista se naturalizou paraguaio, casou com a cunhada no Uruguai para se manter como herdeiro perante à família, na Alemanha, e chegou ao Brasil.

'Sem antecedentes'

Durante a fuga da Alemanha e antes de vir para o Brasil, Josef Mengele se naturalizou no Paraguai, em novembro de 1959. No documento oficial, consta que o médico nazista teria provado, inclusive, não ter antecedentes judiciais e nem polciais. Veja a imagem, abaixo.

Documento de naturalização de Josef Mengele, que passou a ter cidadania paraguaia — Foto: Reprodução

Rota de fuga de Mengele

A rota de fuga de Josef Mengele começou em 1945, quando simplesmente desapareceu de Auschwitz. Permaneceu escondido por quatro anos na Alemanha. Cruzou a fronteira com a Áustria e depois veio para a América do Sul. Primeiro a Argentina, depois o Paraguai, Uruguai e, finalmente, chegou ao Brasil, onde morreu afogado numa praia de Bertioga, litoral de São Paulo, em 1979.

"Aqui no estado de São Paulo, morou em Nova Europa, Serra Negra, Caieiras, Diadema e Embu. Sempre de forma discreta e 'protegido'. [...] Está claro que sempre recebeu ajuda durante sua vida no Brasil. Gente que o conhecia muito bem”, diz o historiador.

O que chamou a atenção de Burini durante a "caçada à história nazista" foi a torre de aproximadamente dez metros de altura construída no telhado da casa do sítio, em Serra Negra.

"Pode perceber que é semelhante as de Auschwitz. É um local alto, que oferece visão ampla de toda a região. Ele mesmo ajudou a construí-la", revela. Talvez isso explique a declaração de José Osmar Silotto, que diz ter visto muitas vezes Mengele aparecer no que chamou de janela.

Torre da casa que foi de Josef Mengele, em Serra Negra — Foto: Marcelo Felipe Sampaio

'Amigo' nazista na cidade

Burini trabalha em um documentário ao lado do cineasta Marcelo Felipe Sampaio. Juntos, tentam montar o quebra-cabeça da passagem de Mengele por Serra Negra.

Estudam uma ligação do médico nazista a um outro e misterioso morador da cidade: Gunther Schouppe, um austríaco que teria lutado pelo exército nazista na Segunda Guerra Mundial. Schouppe chegou a Serra Negra, onde era chamado de Alemão, pouco depois de Mengele.

Comprou terras no Bairro Barrocão e construiu uma casa muito semelhante à do médico. Inclusive a torre. Cerca de 10 quilômetros de distância separavam a construção da residência de Mengele. Burini conta que relatos de antigos moradores da região os descreve como amigos.

"Passavam tempos juntos. Subiam nas torres, olhavam as pessoas", relata.

Casa de Gunther Schouppe, austríaco que teria lutado pelo exército nazista na Segunda Guerra Mundial — Foto: Marcelo Felipe Sampaio

"Schouppe seria cabo da SS e, ferido em campo de batalha, conheceu Mengele em Auschwitz. Isso eu conto no meu trabalho”, observa Burini, que dá ênfase ao fato de Schouppe não ter contra ele qualquer crime de guerra.

"Nada consta em documentos. Apenas relatos de parentes", diz o historiador. Schouppe morreu aos 68 anos, em 7 de agosto de 1990, após sofrer um acidente vascular cerebral e parada cardíaca, de acordo com documento da Funerária Central de Amparo, na época. Ele foi sepultado em Serra Negra.

O historiador tem planos de lançar o documentário em 2019 e, no futuro, promover visitas assistidas às fazendas de Serra Negra, que entraram para a história.

Atualmente as duas residências são propriedades particulares. A de Josef Mengele pertence a um ex-prefeito da cidade e o outro sítio, onde viveu Gunther Schouppe, seria de um empresário de Campinas.

Interior da casa de Gunther Schouppe, austríaco que convivia com Josef Mengele em Serra Negra — Foto: Marcelo Felipe Sampaio

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